28 ago A importância da pesquisa sobre o sono
Jamais poderia ter imaginado que meus estudos preliminares em meados da década de 80, enquanto graduanda, poderiam levar-me a tão complexa e ampla área do conhecimento médico. Nessa ocasião, fazia minha iniciação científica na USP com o saudoso Professor César Timo-Iaria, rodeada por um entusiasmado grupo de pós-graduandos, biólogos e fisioterapeutas, e comecei a me interessar pelo estudo da neurofisiologia do sono.
Trabalhávamos com modelos animais, tentando compreender os mecanismos do sono REM e me lembro que fiquei chocada ao ler um artigo que tratava da privação do sono REM em animais recém-nascidos. Isso era tão nocivo que poderia levar os animais a óbito. Hoje, já como neurologista e com muitos anos de profissão, fica bastante óbvio quão prejudicial é o sono ruim para uma criança.
O sono representa um estado comportamental reversível, com modificação do nível de consciência e da responsividade a estímulos internos e externos.
Trata-se de um processo ativo que envolve múltiplos e complexos mecanismos fisiológicos e comportamentais, simultaneamente, em vários sistemas e regiões do Sistema Nervoso Central (SNC). O sono é importante e talvez a principal manifestação fisiológica e está relacionado a várias funções, uma delas diz respeito à coincidência entre o sono e certas atividades orgânicas, como a secreção de vários hormônios em mamíferos.
O sono não é responsável pela produção desses hormônios, mas, sem dúvida, as modifica. Tal constatação caracteriza o papel do sono como facilitador dos processos de produção de alguns deles. O hormônio do crescimento (GH) aumenta caracteristicamente durante os estágios mais profundos do sono e é secretado de forma rítmica pela hipófise. A melatonina, um hormônio secretado pela glândula pineal no início do período escuro, é sincronizadora do ritmo sono-vigília e de vários ritmos biológicos, como a temperatura corporal.
Felizmente, pude acompanhar a criação de uma nova área – que hoje é a Medicina do Sono – e participar de seu desenvolvimento. A avaliação objetiva do sono humano pela polissonografia trouxe dados novos e de grande aplicabilidade clínica.
Atualmente, temos uma classificação internacional dos transtornos do sono. Citarei a seguir alguns estudos recentes e de importância clínica acerca do sono.
Os transtornos do sono têm prevalência alta na população geral e representa um risco maior para a saúde pública, uma vez que estão relacionados a transtornos respiratórios, cardiovasculares, neurológicos e psiquiátricos, além de um maior risco para acidentes automobilísticos e de trabalho.
Num estudo de levantamento realizado em 1996, na cidade de São Paulo, aproximadamente 81% da população adulta relatou queixas relacionadas ao sono, principalmente insônia e ronco. Estimativas de determinadas regiões dos EUA apontam para uma prevalência da síndrome da apneia obstrutiva do sono (SAOS: síndrome da apneia obstrutiva do sono) em 2% das mulheres e em 4% dos homens.
Tais índices podem ser bem mais elevados se considerarmos grupos específicos da população, como obesos em qualquer idade, mulheres após a menopausa e indivíduos com obstrução nasal crônica. Estudos retrospectivos demonstram que os transtornos do sono são sub-diagnosticados, permanecendo a maioria dos casos não tratada, o que reflete grande falta de informação pelos profissionais da área da saúde.
No caso da criança, a situação é ainda mais complexa, pois a criança que dorme mal raramente sofre sozinha: toda a família compartilha do problema. Os transtornos do sono na criança podem levar à alteração do aprendizado e ao déficit pondero estatural.
Citarei especificamente um dos transtornos do sono na criança, que é a SAOS. Semelhante ao adulto, a SAOS é caracterizada por eventos repetidos de obstrução parcial ou completa das vias aéreas que resulta em trabalho aumentado da respiração durante o sono, hipoventilação, hipoxemia e fragmentação do sono. As implicações da SAOS para a criança podem ser graves, incluindo hipertensão pulmonar e arterial sistêmica, déficit do crescimento e distúrbios do comportamento e aprendizado.
Assim, no que se refere ao SNC, a hipóxia intermitente induz a danosas consequências. Os eventos apneicos e hipopnéicos resultam em diminuição da oferta de oxigênio ao tecido cerebral. Acredita-se que estas disfunções fisiológicas criem um ambiente desfavorável para a homeostase das células cerebrais, afetando particularmente áreas do cérebro, incluindo o córtex pré-frontal e o parietal, que se associam ao controle da memória e de funções executivo-motoras.
Já a sonolência diurna, muito comum no adulto com SAOS, não ocorre, com frequência, embora crianças com SAOS apresentem mais frequentemente sonolência diurna que as normais. Geralmente, a queixa dos familiares é mais relacionada à área comportamental.
Até aqui praticamente só comentei sobre os transtornos do sono, mas existe algo talvez ainda mais importante: os indivíduos normais que são submetidos à privação crônica de sono, por exemplo, nós, profissionais da área da saúde…
E aí felizmente (ou infelizmente) também já temos dezenas de estudos que demonstram o efeito danoso da privação de sono. Enfim, acreditem, nossas avós estavam certas quando diziam que as crianças precisam dormir bem para crescer e ir bem na escola…
Referência:
– ALVES, RC, In: Artigo publicado originalmente na revista ConScientiae Saúde, 2008;7(4):421-422.